Mercado farmacêutico, patentes e alianças com o governo
Ao mesmo tempo em que as associações que vêm buscando na Justiça direito de cultivo (seja por meio de Habeas Corpus, como a Cultive, ou de processos cíveis, como a Apepi e a Abrace) seguem ameaçadas quanto à permanência desses cultivos, os pedidos de licença para plantio de cannabis voltado para pesquisas não conseguem aval para ampliar os estudos.
Foi o que aconteceu com a Unicamp – em parceria com startups -, que não conseguiu liberação para plantio junto à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e não pode dar continuidade aos seus estudos. As pesquisas desenvolvidas pelo Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas Biológicas e Agrícolas (CPQBA) da universidade seriam importantes para fabricar medicamentos melhores e mais acessíveis à base de cannabis.
Enquanto isso, a CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) promoveu uma consulta pública para averiguar junto à sociedade civil a proposta de incorporar ao SUS (Sistema Único de Saúde) o cannabidiol 200mg/ml do laboratório paranaense Prati-Donaduzzi, indicado para tratamento de crianças e adolescentes com epilepsia refratária.
A consulta foi lançada após a primeira reunião do conselho da CONITEC, no início deste ano. Os conselheiros a princípio se colocaram contra, já que a autorização do produto validada pela Anvisa se baseia no regulamento RDC 327 (uma autorização sanitária para produtos à base de cannabis, não sendo considerados medicamentos). “Como seria se a Conitec aprovasse algo com base em premissas de efetividade, eficácia e segurança, não sendo esse produto considerado um medicamento? Não seria o caso de devolvermos o caso para a Anvisa dizendo que a classificação que eles fizeram não nos permite julgar enquanto medicamento?”, perguntou um dos conselheiros na reunião.
O canabidiol da Prati era o único com licença para operação (autorização sanitária) permitindo venda do produto nas farmácias do país. Mas em abril deste ano outra empresa, a Nunature Farms, do Colorado, EUA, conseguiu a licença da Anvisa, também através da RDC 327, para produzir e comercializar dois produtos feitos a partir do canabidiol, com concentrações diferentes.
O canabidiol da Prati, que tem vigência de cinco anos, é o único vendido nas farmácias, desde março de 2020 – como produto derivado de cannabis, não como medicamento. Os produtos da Nunature Farms serão os primeiros a disputar o mercado das drogarias com a Prati.
Atualmente, o produto em vigência da Prati alcança mais de dois mil reais nas prateleiras, e é classificado como um medicamento tarja preta. Quanto ao novo concorrente autorizado pela Anvisa, não se sabe o valor pelo qual será ofertado.
Em outubro de 2020 o Ministério da Saúde aprovou um acordo para transferência de tecnologia e fornecimento do produto Canabidiol 200mg/ml da Prati. O acordo prevê o fornecimento do medicamento ou produto à base de maconha e caberá à Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) a operacionalização do contrato.
Logo em seguida veio o pedido de incorporação e a consulta pública. Coincidentemente, o medicamento a base de cannabis ofertado pela Prati é também o único produto com patente concedida pelo INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), com vigência de exploração do composto por 20 anos. Porém, há questionamentos em torno dessa aprovação. “Essa patente é questionável, pois patentes requerem inovação no estado da arte da técnica. Existe muito conhecimento tradicional para óleos de cannabis, bem como publicações científicas prévias sobre este óleo que foi patenteado. Mas é uma discussão pendente se houve de fato inovação”, esclarece o advogado, consultor em Direitos Humanos e professor de Direito Constitucional, Konstantin Gerber.
A patente de um produto é relativa a algum processo de produção, extração ou até mesmo cultivo, mas não da substância da planta. No caso da cannabis, não existe uma pessoa ou empresa que detenha esse conhecimento de forma exclusiva, portanto a substância não pode ser patenteada. “É possível patentear uma fórmula, mas nunca a matéria prima vegetal. Os compostos à base de cannabis são considerados fitofármacos, portanto não podem ser patenteados”, resume a advogada da SouCannabis, Daniela Tamanine.
Foi justamente com base nesses argumentos que o colegiado técnico do Inpe recomendou em abril deste ano, por meio de um relatório de exame técnico, que a patente concedida à Prati seja anulada. O documento será encaminhado ao presidente do Inpe, Cláudio Vilar Furtado.
No caso do produto em questão, os questionamentos apresentados por médicos e pesquisadores são no sentido de que por se tratar de um composto isolado, sendo um produto praticamente sintético misturado ao xarope de milho, não seria apropriado e indicado para uma parcela grande de pacientes. “As pesquisas e os resultados com os pacientes que usam produtos derivados de cannabis comprovam que o extrato integral da planta é mais eficaz que a fórmula isolada”, pontua o neurologista e prescritor cannábico Geovane Massa.
Outro agravante sobre essa empresa paranaense é que em 2016 o Ministério Público do Paraná obteve ofício da Anvisa que apresentava mais de 160 medicamentos da marca Prati-Donaduzzi com variados problemas de fabricação. O histórico de fiscalização da Anvisa aponta o Prati-Donaduzzi como um dos laboratórios mais interditados por desvios na fabricação de medicamentos no Brasil. Além disso, é reincidente em produzir remédios genéricos com qualidade questionável.
“É da natureza do jogo do mercado capitalista, também no nicho das empresas farmacêuticas, querer exclusividade de mercado e ganhar o máximo que puderem. As agências reguladoras do mundo todo, como é o caso da Anvisa no Brasil, são alvos de pressão desses grupos e vão encontrar mecanismos de alinhar os anseios dessas empresas através de pressão política, por exemplo, mas não por exigência técnica e muito menos de saúde pública”, comenta o médico e prescritor canábico Dr. Paulo Fleury Teixeira.
Se existe a possibilidade de um paciente fazer o tratamento pelo SUS, os juízes atuam de modo a obrigar o Estado a fornecer a medicação. No caso de prescrições para epilepsia infantil refratária, se o produto da Prati for aprovado pela Conitec, será ele o fornecido para o tratamento.
Além disso, se o juiz obriga o Estado fornecer a medicação a esses pacientes, não será dado a eles o direito de buscar o Habeas Corpus de cultivo. “Ainda se o STF (Superior Tribunal Federal) entender que União, Estado e municípios são obrigados a fornecer óleo importado autorizado pela Anvisa, pode haver restrição sim aos HCs. A questão é que nem todo paciente responde bem ao tratamento com óleo importado, e sim com óleo artesanal. Neste caso, a verdade jurídica brota dos fatos, sendo caso de Habeas Corpus e não de uma obrigação do Estado de fornecer a medicação. Cada caso é um caso”, esclarece o advogado Konstantin Gerber.
Outro ponto sobre a falha de se incorporar esse produto ao SUS é quanto à especificação da dosagem, já que concentração varia de acordo com a necessidade terapêutica. E no caso em questão, apenas uma dosagem está definida no produto da Prati: 200mg/ml.
Segundo dados do Ministério da Saúde, se aprovada, a compra do medicamento da Prati custará mais de 400 milhões, para tratar cerca de mil pacientes com epilepsia por cinco anos.
“Quem sabe um dia seja possível que o SUS incorpore um produto de cannabis. Mas não o produto em questão, pelo alto custo e por não ter estudos definitivos em relação à eficácia e segurança. Afinal, estamos diante de um produto de cannabis com autorização sanitária, e não de medicamento com registro. Talvez não seja o momento para sua incorporação ao SUS. O Mevatyl, que está registrado como medicamento desde 2017, não foi incorporado até hoje”, analisa o advogado Leonardo Navarro.
Uma alternativa proposta e encaminhada pela Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (que representa mais de 40 empresas, sendo oito delas no setor de cannabis) é que a incorporação do canabidiol no SUS não seja atrelada a uma concentração específica e a uma única empresa, pois o canabidiol é um princípio ativo em que se observa variação de concentração, a necessidade terapêutica de cada paciente é distinta e existem outros produtos de cannabis em fase de obtenção de autorização sanitária junto à Anvisa.
Os fatos apresentados neste texto evidenciam algumas das irregularidades do laboratório Prati-Donaduzzi, questionam a legitimidade da patente e a eficácia da incorporação desse produto ao SUS para pacientes.
Em resumo, o cenário do mercado da medicina canábica no Brasil apresenta os seguintes fatos:
Anvisa aprovou mais dois novos produtos da Prati, Conitec avalia incorporar o canabidiol dessa farmacêutica no SUS, Ministério da Saúde fechou um convênio sem licitação com o laboratório que conseguiu em tempo recorde uma patente com período de 20 anos de exploração.
Serão coincidências nesse cenário?