Mercado, regulamentação e acesso ao tratamento, o que se espera do cenário esse ano?
Pensar nas perspectivas da cannabis para 2024 é um exercício necessário para alinhamento de ideias e de planejamento, tanto para quem já está no mercado como para quem deseja dar os primeiros passos dentro desse cenário.
Em termos de números, o mercado está bem promissor. Segundo dados do relatório anual da cannabis de 2023, elaborado pela Kaya Mind, o Brasil fechou o ano com mais de 400 mil pacientes em tratamento com a planta, ou seja, um crescimento de 130% em relação a 2022. A tendência é um crescimento ainda maior.
Do total de pacientes no país, o relatório apontou que 219 mil pacientes fazem importação de medicamentos de cannabis no Brasil, enquanto 114 mil (26%) fazem tratamento via associações e 97 mil pessoas (22%) têm acesso aos medicamentos à base de cannabis nas farmácias. Há também remédios no Sistema Único de Saúde (SUS) e a estimativa do gasto público com eles foi de R$80 milhões em 2023, cerca de 10% do mercado.
Porém, na atual realidade que vivemos, a regulamentação por parte da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) através da RDC 660 permite a importação de produtos à base de cannabis, mas baseada na lei de drogas, proíbe o plantio, a produção e o consumo local. Isso faz com que mais da metade do que é comprado pelos pacientes venha do mercado externo, gerando receita para países como EUA, Canadá e outros da Europa em vez de movimentar recursos para investimento no próprio país.
Perspectivas da cannabis e o crescimento do mercado
Ainda em 2021, a Kaya Mind havia prospectado que em quatro anos, num cenário de regulamentação envolvendo os usos medicinal, industrial e recreativo da maconha, o setor poderia criar até 328 mil empregos e uma receita de R$26 bilhões ao país.
Mesmo diante de uma regulamentação que ainda está longe do ideal, o mercado interno promete continuar a prosperar e a indústria brasileira da cannabis poderá faturar cerca de R$1 bilhão esse ano.
O que esperar do legislativo?
Desde 2015 a Anvisa é o órgão federal que regulamenta o mercado de produtos à base de cannabis no Brasil através de RDCs (Resolução da Diretoria Colegiada). Ao total, foram nove RDCs, que variam entre permissão de autorização de importação e até produção com insumos importados.
“A ANVISA segue sob pressão de vários lados. Os pacientes estão completando dez anos pedindo para a ANVISA regulamentar a produção da cannabis. As empresas que atuam neste mercado em expansão também pressionam a ANVISA, tanto as que operam com produtos importados como as que operam com produtos vendidos nas farmácias e drogarias nacionais. Os governos locais também pressionam a ANVISA em busca de segurança jurídica para seus programas de fornecimento. E com a demanda pelo cultivo nacional o Ministério da Saúde tem aparecido, pois, segundo a regulamentação atual, este é o órgão que deveria autorizar o cultivo para fins medicinais ou científicos em nome da união federal”, destaca a advogada Marcela Sanches.
Em termos de Projeto de Lei, desde que o estado de São Paulo aprovou a lei para distribuição da cannabis no SUS (Sistema Único de Saúde) o assunto tem se ampliado nas discussões tanto no campo legislativo quanto na mídia nacional.
Há Projetos de Leis dessa ordem que tramitam em praticamente todas as unidades da federação. Dos 27 estados, há PL sendo discutido em 24 deles, sendo que destes, 11 já conto com leis aprovadas
“Estou muito feliz com o impacto e a repercussão da lei 17.618/23 que inclui a cannabis medicinal no SUS do estado de São Paulo. Essa pauta disruptiva já atinge todas as regiões do País. Estados e municípios vêm apresentando inúmeros projetos iguais ou semelhantes ao de São Paulo. O nosso pioneirismo passa também pela criação da Frente Parlamentar da Cannabis Medicinal e do Cânhamo Industrial que nos últimos dois anos reuniu médicos, pesquisadores, especialistas, parlamentares e toda a sociedade civil com a finalidade de discutir os avanços e desafios ligados à temática”. Caio França (PSB), deputado estadual por São Paulo e um dos autores do PL.
No campo Judiciário, a advogada e integrante da Rede Reforma Marcela Sanches reforça que as ações de fornecimento, habeas corpus para auto cultivo, ações de associações e empresas vão continuar enquanto o mercado não tiver uma regulamentação efetiva e que garanta o acesso democrático.
“Desde 2016, diversos pacientes cultivam maconha no Brasil legalmente por força de milhares de decisões judiciais para indivíduos e associações. Toda essa questão do uso medicinal tem chamado cada vez mais atenção devido ao dinheiro que já movimenta e às previsões de um mercado em potencial, que poderá ser criado a partir da regulamentação do cultivo de Cannabis e de produtos de Cannabis como cosméticos, veterinários, alimentos etc”, pontua Marcela.
No poder judiciário existe a esperança de votação do Recurso Extraordinário 63659, cujo julgamento pelo STF (Superior Tribunal Federal) chegou a ser retomado em 2023, mas que ainda não foi finalizado.
“O STF não parece estar disposto a acabar com as punições ao descriminalizar o porte para consumo pessoal, pois a tendência é a maconha seguir proibida e seus usuários serem submetidos a sanções administrativas. Enquanto os comerciantes de maconha seguem como inimigos que são combatidos em público e fomentados no privado”, esclarece Marcela.
Tendências de mercado
Para a educadora cannabica, Luna Vargas, especialista em assuntos de indústria e mercado da cannabis e que conhece de perto a realidade de diversos países onde a planta é legalizada, existem algumas tendências para além do mercado medicinal.
Uma delas seria a indústria do cânhamo, que além do potencial para produzir medicamentos à base de CBD, alcança também os produtos alimentícios, suas fibras têm potencial para produção de tecido, papel, tijolos para construção civil, entre outros produtos, como os cosméticos.
Já existe o mercado legalizado das tabacarias, que vendem produtos para consumo da planta e que já podem começar a se preparar para se tornarem futuros dispensários de produtos à base da cannabis, como flores in natura, óleos, chocolates, balas, bebidas, cigarros, pomadas, entre outros. Exemplos desse modelo já acontecem no Canadá, onde a planta é legalizada desde 2018.
“Existem quatro principais pressões que é importante prestar atenção e colaborar com elas. A primeira delas é a pressão política. Fazer frente e dialogar com os parlamentares nas esferas estadual, municipal e federal. Tem a pressão internacional e principalmente dos países vizinhos, que já estão cercando o Brasil com seus modelos de regulamentação e legalização, como é o caso do Uruguai, Paraguai e Argentina. Tem a pressão econômica, a cannabis pode gerar dinheiro com arrecadação de impostos e investimentos. E tem a pressão dos movimentos sociais, que é central para pender a balança para o nosso lado. Para que a legalização seja feita com acesso amplo, reparação histórica e justiça social”, reforça Luna.
O associativismo como caminho democrático de acesso ao tratamento
Atualmente o associativismo no Brasil é responsável por atender uma demanda de mais de 150 mil pacientes, algo inédito no mundo.
Em termos de números, apenas o estado de São Paulo atende cerca de 840 pacientes por medida judicial e tem um gasto de 23 milhões para oferecer o tratamento a eles. Se os 150 mil pacientes que as associações atendem fossem ser judicializados, daria um gasto de cerca de R$4 bilhões de reais aos cofres públicos.
Destes 150 mil pacientes, milhares deles recebem tratamento com valor social ou mesmo de graça, oferecido pelas associações.
Essa realidade demonstra a força do associativismo em democratizar o acesso.
“Eu entendo que esse ano os avanços vão continuar pelas mãos dos advogados antiproibicionistas, das associações e principalmente dos próprios pacientes, não só como massa de pressão política e social mas na desobediência civil. Existem alguns políticos trabalhando a pauta, mas com limitações técnicas da Anvisa e mesmo com a falta de agilidade do poder executivo. O que continua emperrando a ampliação das poucas leis em vigor e dos avanços no legislativo. Em Brasília se fala muito do PL 399, mas ele é um PL voltado para a indústria que não contempla as associações, existem grandes chances dele ser votado esse ano. O que não deixa de ser uma ponta de avanço pra sociedade, mas tem a questão dele contemplar apenas um grupo e de não trazer garantias de justiça social, de reparação histórica, que é uma das pautas mais urgentes da sociedade, ou seja, trabalhar política de drogas para acabar com a guerra às drogas”, defende Ângela Aboin, coordenadora geral da Fact Brasil (Federação das Associações de Cannabis Terapêutica).