A potência terapêutica dos concentrados de cannabis sob orientação médica.
Depois de ser retratado em rede nacional como uma “droga pesada e viciante”, o ICE, uma extração potente da Cannabis, voltou ao centro do debate público, mas com pouca informação e muito sensacionalismo.
A reportagem exibida pelo programa Fantástico, da TV Globo, acendeu o alerta em setores conservadores, comparando a substância a entorpecentes de alto risco, como o crack e a metanfetamina.
O que ficou de fora da matéria, no entanto, é que, quando produzido com controle e usado com orientação profissional, o ICE pode ser uma ferramenta terapêutica valiosa em tratamentos de dor crônica, epilepsia, náuseas e outras condições.
O que é ICE e por que é tão potente?
O ICE nada mais é do que um produto derivado da planta Cannabis sativa, assim como são os óleos, as pomadas, os géis e os comestíveis. Esse produto concentra os princípios ativos da planta, que são os canabinóides, os terpenos e os flavonóides.
Esses princípios ativos ficam armazenados num elemento da planta chamado de tricoma, uma camada resinosa que se forma, principalmente, nas flores femininas da Cannabis. Portanto, são esses tricomas que armazenam a potência terapêutica da planta, indicada para diversos tipos de tratamento.
Para produzir o ICE, também conhecido como Ice Hash, Bubble Hash ou Full Melt, é necessário fazer uma extração desses tricomas das flores da planta. Esse processo é feito de forma natural, pois utiliza apenas baixas temperaturas e movimentação para “soltar” os tricomas da planta.
O nome ICE vem justamente do uso de gelo no processo de extração, já que “ice” significa gelo em inglês.
Como é feito o ICE?
Existem várias formas de se fazer concentrados de Cannabis, também chamados de haxixe, algumas formas de extração utilizam solventes e outras não. O ICE faz parte da categoria que não utiliza solvente.
O termo “haxixe” é de origem árabe e está ligado a um processo milenar de extração feito manualmente em países como Afeganistão, Irã e Paquistão. Durante a colheita da Cannabis, a resina que recobre as flores gruda nas mãos de quem manipula a planta, formando uma espécie de cola que depois é retirada e moldada em bolas ou tablets.
O ICE é uma evolução moderna desse método ancestral. Ainda que não exista um consenso definitivo, Mila Jansen, conhecida como a Rainha do Haxixe, é frequentemente apontada como uma das inventoras dos sistemas modernos de extração sem solventes, incluindo o ICE.
Na prática, flores de Cannabis de alta qualidade são colocadas em baldes com água e muito gelo. Essa mistura é agitada em um equipamento que lembra uma lavadora de roupas. Também é possível agitar manualmente com pás ou colheres grandes. A água então passa por filtros de diferentes tamanhos, separando os tricomas por grau de pureza. Depois disso, o material coletado é cuidadosamente seco. O resultado final é um concentrado de altíssima potência e teor de canabinóides.
Sensacionalismo x ciência
A matéria do Fantástico usou adjetivos como “droga pesada” e “viciante” ao se referir ao ICE, ignorando qualquer menção a estudos científicos ou à distinção entre uso recreativo e medicinal.
Embora o uso irresponsável possa apresentar riscos, justamente pela alta concentração de THC, o estigma gerado ofusca os potenciais benefícios e cria barreiras para pacientes que poderiam se beneficiar do tratamento.
O perigo do ICE é a falta de regulamentação
O grande vilão dessa história está no proibicionismo, afinal, o uso de substâncias, entre elas a Cannabis, acompanha a história da humanidade há centenas de milhares de anos. A sociedade foi categorizando essas substâncias em lícitas e ilícitas.
Se criarmos um paralelo com o álcool, que é uma substância lícita e socialmente aceita, apesar dos efeitos nocivos que causa ao corpo humano, percebemos que existem diversas variedades de bebidas com diferentes níveis de teor alcoólico.
Os produtos derivados da Cannabis também apresentam essas nuances de concentração de compostos ativos. As extrações, ou haxixes, são produtos com alta concentração desses compostos. Uma flor de Cannabis, por exemplo, pode apresentar até 20% de THC, já um ICE pode ter até 90% de THC.
As substâncias que pertencem à categoria lícita são regulamentadas, portanto, ainda que a bebida tenha um alto teor de álcool, como cachaça, gin, vodka ou uísque, elas seguem um rigoroso processo de fabricação que garante a qualidade do produto. Salvo os casos de produção contrabandeados, que são mercadorias importadas ou exportadas ilegalmente, que muitas vezes não seguem as normas legais e sanitárias do país de destino. Isso inclui tanto produtos proibidos quanto produtos lícitos, mas cuja entrada ou saída do país ocorre de forma clandestina ou fraudulenta.
A Cannabis e seus derivados pertencem à categoria das substâncias ilícitas e por isso, não regulamentadas, portanto não há uma garantia instituída pelo Estado sobre a qualidade do que está sendo consumido. Aí mora o perigo. Pois esses concentrados podem não seguir normas seguras de fabricação e, pior, serem adulterados com outras substâncias, comprometendo a qualidade da extração.
Uma vez que a Cannabis passa para a categoria das substância lícitas, os produtos dela derivados serão regulamentados, assegurando à sociedade que faz uso desses produtos, a qualidade do que está sendo consumido, minimizando o acesso a produtos adulterados, tal qual existe na indústria do álcool e do cigarro.
É mais inteligente reconhecer que as pessoas fazem uso de substâncias e, portanto, criar medidas de produção que assegurem sua qualidade, do que criar um terrorismo em torno de algumas substâncias, proibindo-as e colocando em risco a saúde da população usuária.
Qual o real perigo de altas concentrações de THC?
O THC é um dos diversos tipos de canabinóides que existem na Cannabis. O que o faz popular é o efeito psicotrópico que ele causa no corpo humano, ou seja, aquele efeito “chapado” que as pessoas sentem ao fumar um baseado, por exemplo. Neste caso, quanto mais alta a concentração de THC, maior será esse efeito no corpo.
Mas não é só o efeito “chapada” que o THC causa, ele tem um grande potencial terapêutico e portanto, muitas indicações clínicas, como por exemplo dor crônica, náuseas, falta de apetite, redução de tremores, entre outras modalidades.
A questão que pode gerar preocupação é quando esse consumo de altas doses de THC, presente nas extrações, se dá em menores de 20 anos, cujo uso não é recomendado porque o cérebro ainda está em desenvolvimento. O consumo precoce pode prejudicar as sinapses cerebrais e afetar a memória e a atenção.
Outro ponto de atenção são pessoas com histórico familiar de transtornos psiquiátricos, como esquizofrenia ou transtorno bipolar. O THC não causa essas doenças, mas pode desencadear um primeiro episódio em indivíduos predispostos.
Uso terapêutico com segurança
Por ser tão potente, o ICE deve ser usado preferencialmente com orientação de um profissional da saúde. Em contextos terapêuticos, ele pode ser uma alternativa quando outras formas de derivados da Cannabis não têm o efeito desejado, como em pacientes com dores intensas, que enfrentam quimioterapia, espasmos musculares graves ou epilepsias resistentes.
O segredo está na dosagem correta e no acompanhamento. Um profissional capacitado pode orientar o melhor método de uso (por exemplo: vaporização, uso oral, entre outros) e a quantidade exata para cada organismo.
Prescrição é indispensável: profissionais especializados em terapia canabinóide e habilitados legalmente a fazer prescrições ajustam dosagem, modo de uso (inalação, sublingual, tópico) e frequência.
Controle de qualidade: exames de lotes (certificado de análise) garantem ausência de contaminantes como metais pesados, pesticidas e fungos, bem como apontam a concentração e proporção de cada substância ativa presente nos produtos.
Monitoramento clínico: acompanhamento contínuo garante segurança no uso e ajusta o tratamento conforme resposta do paciente.
O ICE não é uma ameaça à saúde pública, mas sim uma ferramenta de alta potência que, se usada com acompanhamento terapêutico, responsabilidade e amparo legal, pode representar um avanço importante para a saúde de muitas pessoas. O que representa perigo não é a substância em si, mas a ausência de regulação, de informação e de políticas públicas coerentes com a realidade do uso.
Tratar o ICE como “droga pesada” enquanto se ignora o álcool e o cigarro, que causam milhares de mortes por ano, é sinal de um debate ainda marcado pelo estigma e pelo medo. O que a sociedade precisa é de educação, transparência e políticas que priorizem o bem-estar das pessoas e não o preconceito.
Fontes de pesquisa:
@doutorpv
@lunavargas
@girlsingreen710