Mesmo sem a regulamentação do cultivo da planta, as associações seguem produzindo remédios e salvando vidas em um cenário proibicionista.
Intoxicação por metanol e a contradição brasileira
Enquanto o Brasil se assusta com os casos de intoxicação por metanol, fruto da adulteração de bebidas destiladas, um setor regulamentado no país, pacientes em tratamento com Cannabis, sobretudo os que dependem das associações, vivem outra preocupação: a anunciada regulamentação do setor. O problema é que o associativismo não está contemplado no plano que será apresentado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e pela União ainda este ano.
A determinação do STJ
Em 2024, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) determinou que a Anvisa e a União criassem um plano para regulamentar o cultivo de cânhamo, uma variedade de Cannabis, em solo nacional, para fins medicinais e farmacêuticos.
O que provocou essa mobilização foi uma ação movida pela DNA Soluções em Biotecnologia, empresa especializada em pesquisa biológica. Ela deu início a um processo para importar sementes de cânhamo com baixo teor de THC (tetraidrocanabinol), argumentando que a proibição do cultivo nacional era contraditória, já que a Anvisa permite a importação de derivados da planta.
Um plano nebuloso e excludente
Apesar do prazo já ter se encerrado, o plano completo segue sendo um mistério. A prévia apresentada em junho de 2025 e agora em setembro, mostra que a proposta não contempla o cultivo pelo terceiro setor, justamente a segunda principal via de acesso aos tratamentos, depois das importações.
Segundo o STJ, a regulamentação deve focar no cânhamo, variedade com baixo teor de THC, princípio ativo estigmatizado por causar efeitos “chapados”. Por outro lado, essa espécie concentra CBD (canabidiol), que ganhou destaque justamente por não causar o chamado “barato” e se popularizou no campo da saúde.
A proposta prevê o cultivo de plantas com predominância de CBD e até 0,3% de THC.
Entraves científicos e práticos
Há dois grandes problemas nesse modelo. O primeiro é a dificuldade de garantir o limite de 0,3% de THC, já que o cânhamo, como toda Cannabis, varia seus princípios ativos de acordo com clima, solo e irrigação.
O segundo entrave é científico: estudos mostram que produtos com maior diversidade de princípios ativos têm resultados mais eficazes. Ou seja, extratos apenas de CBD oferecem um valor terapêutico inferior.
Na prática, a regulamentação proposta tende a comprometer tanto a produção de matéria-prima quanto a qualidade do tratamento.
Associações fora do jogo
As associações, que há mais de uma década enfrentam o proibicionismo e a criminalização, ficam novamente de fora. Elas cultivam Cannabis sativa e não cânhamo, produzindo extratos integrais com todos os princípios ativos, não limitados a 0,3% de THC.
Enquanto na indústria regulamentada das bebidas o crime organizado encontra brecha para adulterar os produtos com metanol e prejudicar a população com intoxicação e morte, na indústria da Cannabis, as associações sofrem perseguição criminal pela falta de regulamentação mesmo que na prática sejam responsáveis pelo tratamento de mais de 100 mil pacientes
Quem ganha com isso?
Esse cenário regulatório favorece o agronegócio e as farmacêuticas. Exclui o terceiro setor e a agricultura familiar, duas frentes estratégicas que deveriam ser priorizadas.
Transformar a Cannabis ou o cânhamo em mais uma commodity, vendida como substituta da soja, significa repetir as falácias do agronegócio: envenenar a comida, degradar o meio ambiente e concentrar renda nas mãos de poucas empresas e latifundiários.
Um modelo que já funciona
A Cannabis e o cânhamo são plantas milenares, com enorme potencial econômico diante de suas aplicações industriais e terapêuticas. Mas elas não se encaixam nas regras de plantio prestes a ser impostas.
Ao contrário do que se propõe, o marco regulatório deveria partir do que já existe: o modelo associativo, que hoje garante todo o processo, do cultivo à distribuição do produto final. Não há nada a ser inventado, apenas a necessidade de regulamentar um setor que já funciona.
Caso contrário, o país assistirá à transferência desse potencial econômico das associações, ou seja, do povo, para os mesmos grupos privilegiados do agronegócio e das empresas farmacêuticas.

Uma planta milenar
É importante lembrar que a Cannabis ou maconha é usada pela humanidade há milênios, presente até nos quintais antes do proibicionismo, e que poderia estar de novo. Há todo um conhecimento ancestral em torno da planta que foi capturado pelo discurso médico-científico higienista, que tenta isolar seus canabinóides e transformá-la em um produto controlado, dependente de todo um aparato para ser “enfrascado” como remédio.
Regulamentar o cultivo é, sim, uma necessidade, mas precisa ser feito de forma coerente, inclusiva e respeitosa com quem enfrenta essa luta há anos: pacientes e associações.