Perspectivas regulatórias para o mercado o uso medicinal e o avanço das pesquisas no país.
O cenário da Cannabis no Brasil em 2025 é reflexo de importantes passos que foram dados pelo judiciário no ano passado, seja através da descriminalização do uso pessoal pelo STF (Supremo Tribunal Federal) ou pela autorização de cultivo de cânhamo concedida pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Foi a partir do crescente reconhecimento do potencial terapêutico da planta, que o debate vem ganhando amplitude para além do uso medicinal, que aliado à evolução nas regulamentações, abre novas perspectivas para o país em diversas áreas.
Para entender melhor esse cenário, reunimos a análise de especialistas e dados de pesquisas recentes, destacando os aspectos medicinais, de mercado, legislativos e científicos.
O cenário da cannabis no Brasil após a decisão do STJ e a influência no crescimento do uso medicinal
A utilização medicinal da cannabis no Brasil vem crescendo, especialmente em tratamentos para condições como epilepsia refratária, dores crônicas e alguns tipos de câncer. Dados da Anvisa apontam que o número de produtos à base de cannabis aprovados no país vem ganhando grandes proporções.
Somente no ano passado, o mercado brasileiro da cannabis medicinal movimentou R$853 milhões. Esse valor representa um aumento de 22% em relação a 2023, quando o total alcançou a marca de R$699 milhões.
Além disso, a autorização concedida no ano passado pela Anvisa para o uso veterinário vai impactar diretamente nesse crescimento. Profissionais da nutrição, enfermagem, farmácia e fisioterapia esperam conseguir liberação para prescrever produtos derivados da planta.
No entanto, é preciso que a regulamentação do cultivo e da produção de remédios no país seja efetiva e democrática para tornar o uso da cannabis uma oportunidade acessível para qualquer cidadão, uma vez que o custo ainda é elevado e inviável para muitos pacientes que dependem ou que podem se beneficiar desses tratamentos.
“Temos uma nova previsão regulatória. Através do julgamento do IAC 16 (Incidente de Assunção de Competência) pelo STJ se fixou que o cânhamo industrial, uma variedade de Cannabis conhecida como Hemp, com quantidade de THC inferior a 0,3%, não é proscrita, ou seja, se tem liberdade para fazer o uso medicinal e farmacológico desse cultivar. Neste caso, se determinou que a Anvisa tem esse ano de 2025 para que seja emitida essa regulamentação da produção do insumo farmacêutico de cânhamo. Embora seja uma ampliação da liberdade produtiva em território nacional, não foram incluídas nessa decisão as associações e os pequenos produtores, pois a permissão é para escala industrial. Além disso, o cânhamo não tem o mesmo perfil de cannabinoides, de terpenos e flavonoides em quantidade e variedade que encontramos na Cannabis sativa e isso, interfere diretamente no efeito terapêutico”, explica a advogada Betina Maciel, advogada antiproibicionista.
Mercado em expansão e as possibilidades que a Cannabis oferece
Empresas nacionais e internacionais estão investindo em infraestrutura para produção e distribuição de produtos e serviços derivados, enquanto startups surgem com soluções inovadoras para o setor.
Apesar do avanço, os entraves burocráticos e a resistência de parte da sociedade, que se encontra presa nos discursos de preconceito e que demonizam a planta, são desafios que ainda precisam ser superados.
Para além do uso medicinal, o mercado da Cannabis abre frente a uma série de possibilidades no empreendedorismo. Ainda que o cânhamo não seja a melhor opção para o uso medicinal, ele se destaca para a produção industrial de uma série de produtos.
São mais de 25 mil variedades que se aplicam no mercado da moda (tecidos), na construção civil (tijolo, plástico, fibra), no setor automobilístico (fibra e plástico), na produção de cosméticos, alimentos e bebidas, na segmentação do turismo e do lazer, que dialogam com o estilo de vida dos admiradores da erva.
Algo que já vem se expandindo em dezenas de países que legalizaram ou regulamentaram o uso, o plantio e a produção e que juntos, movimentam um mercado da ordem de US$647 bilhões.
O Brasil segue obsoleto e atrasado, porém com potencial para liderar a produção da planta na América Latina. Uma vez regulamentado o setor, o país saltaria da posição de importador para exportador de insumo, gerando emprego, renda e produtos mais baratos.
Dados da Kaya Mind, startup brasileira que estuda e avalia o mercado, mostraram que cerca de quatro anos após a aprovação de um marco regulatório, a planta poderia render R$30,5 bilhões anuais à economia brasileira e gerar 328 mil novos empregos.
“A grande inovação não está apenas na cannabis, mas em como o mercado irá se estruturar dentro do novo quadro regulatório previsto para 2025. As questões centrais são: teremos cultivo regulamentado? Quem terá permissão para cultivar e comercializar? Haverá a libertação das pessoas presas por crimes relacionados à cannabis? O principal desafio é aprender a navegar no mercado cinzento enquanto pensamos estrategicamente em maneiras de puxar o setor para um modelo mais inclusivo e menos monopolizado pela indústria farmacêutica. Para isso, conhecimento aprofundado sobre cannabis e uma visão clara do mercado são indispensáveis”, pontua Luna Vargas, consultora e educadora especializada em ciência e indústria da Cannabis.
Avanços legislativos e regulatórios
No âmbito legislativo, o advogado e membro da Associação Brasileira de Estudos da Cannabis, Konstantin Gerber, sinaliza e faz uma análise de alguns projetos de Lei em andamento no país:
“O Projeto da Senadora Mara Gabrilli prevê: autorização para de produção para pessoa que faz uso medicinal mediante prescrição e autorização para associações de apoio aos pacientes que fazem uso medicinal de Cannabis. Começou a tramitar no Senado. Vai passar pela Comissão de Agricultura e demais comissões até chegar na fase de revisão da Câmara Federal, para então finalmente ir para a sanção presidencial (PL 5511/23).
O Projeto do Senador Flávio Arns restringe a autorização a pessoas jurídicas, porém inclui autorização para associações (PL 4776/2019). Está na Comissão de Assuntos Econômicos e vai demorar também até ser revisto pela Câmara Federal.
O PL 399/15 equipara associações a farmácias de manipulação, ignora a realidade do autocultivo e reúne pormenores típicos de decreto regulamentar. Passa por cima da lei de sementes que possibilita o livre intercâmbio de sementes de pequenos agricultores e que conta com simplificação de requisitos de importação de sementes para uso próprio dentro da propriedade. O PL 399/15 reúne obrigações sanitárias e agrícolas muito difíceis para as associações. Aguarda-se decisão da mesa diretora da Câmara Federal sobre recurso para levar a votação em plenário para depois seguir para o Senado Federal, se aprovado. Se seguir para o Senado será preciso emendá-lo bastante, só que isso atrasará, porque o projeto de lei volta para a Câmara analisar as alterações do Senado”
A advogada Betina Maciel, destaca que dentro do mercado medicinal há muitos estados e cidades que buscam uma regulamentação para dispensação e distribuição de óleo de Cannabis via SUS.
“O que realmente precisamos é firmar a manutenção do que foi conseguido em 2024, para que não haja um retrocesso das conquistas e sim uma evolução. Precisamos de políticas públicas voltadas para Cannabis e outras substâncias terapêuticas, como ayahuasca e psilocibina com base em pesquisa nacional e informação de qualidade. Precisamos de uma política mais humanitária, com plantio organizado e debate com a população”.
Inclusão do terceiro setor na produção nacional
As associações de Cannabis, que compõem a representação do terceiro setor no cenário nacional, são responsáveis pelo tratamento de mais de 200 mil pacientes. O maior diferencial do associativismo para a indústria farmacêutica é que não há fim lucrativo e por isso, elas conseguem atender milhares de pessoas de forma gratuita ou com custos baixos.
Além disso, as associações reúnem um precioso banco de dados dos pacientes em tratamento, algo de grande valor para apoiar projetos de pesquisas. Grande parte delas, já participam de estudos em parceria com universidades e outras instituições de ciência.
Porém, não se vê nos trâmites regulatórios em andamento a inclusão desse setor na autorização de cultivo e da produção de produtos à base da planta. Por isso, a união de associações é indispensável para que a luta associativa tenha espaço de ampliação
“A FACT (Federação de Associações de Cannabis Terapêutica), que reúne mais de 50 associações filiadas, está trabalhando em um projeto de autorregulação que consiste na elaboração de um documento com diretrizes de boas práticas para ser apresentado ao Ministério da Saúde. Por isso, precisamos que o governo olhe com mais consciência para o que representa o associativismo. Precisamos de garantias e incentivo para o avanço do cultivo em solo nacional, além de apoio às pesquisas que já realizamos. Não há como equiparar a produção das associações com a escala da produção industrial”, reforça Ângela Aboin, coordenadora geral da Fact e diretora da Mãesconha.
Sem uma regulamentação voltada para o terceiro setor, as associações seguem enfrentando dificuldades e acabam impossibilitadas de serem fornecedoras de produtos para o SUS, papel restrito à indústria farmacêutica nos processos de licitação.
“Os entraves continuam sendo as determinações judiciais em pedidos de associações para se fazer cumprir as exigências da Anvisa. A ABRACE enfrentou dificuldades, porém vem conseguindo cumprir com as exigências e caminha para obter uma Autorização Especial definitiva. Fora disso, permanece o risco de criminalização. Parcerias com universidades já existem, agora o desafio é pensar em parcerias com o SUS”, pontua Konstantin.
O cenário da Cannabius para o uso recreativo da Cannabis
A decisão do STF em meados do ano passado, que descriminalizou o porte de maconha de usuários com até 40g ou o plantio de seis plantas fêmeas, já representa um grande avanço diante da realidade proibicionista que o país enfrenta há mais de uma década.
“O STF fixou uma quantidade que distingue traficante de usuário, e esse passo já desencadeou mudanças significativas nos julgamentos de primeiro e segundo grau quando há flagrante. Outro ponto importante dessa decisão e que sinaliza uma mudança mais humanizada, são os mutirões de revisão penal de pessoas que foram presas com quantidades inferiores a 40 g, que pode chegar a mais de 65 mil casos. Nós, advogados antiproibicionistas, esperamos que seja apenas o início dessa percepção social. Porém, temos um congresso retrógrado, que tem a PEC 45 para ser votada e que pretende criminalizar o usuário. Temos muita luta pela frente”, reforça Bettina Maciel.
O cenário da Cannabis para o uso religioso de Cannabis
“Já temos o entendimento de que não é crime o cultivo para fins medicinais mediante comprovação de tratamento. Agora é fazer valer de que não é crime o cultivo para fins ritualísticos-religiosos. Considerando os movimentos de libertação ou linhas espirituais que têm a Ganja, a Santa Maria como sacramentos, é possível que organizações religiosas passem a reivindicar solução para a omissão regulamentar do CONAD, com aplicação por analogia do regulamento de uso religioso responsável da Ayahuasca”, explica Konstantin.