Mais de 20 mil produtos derivam da planta e o mercado internacional já fatura bilhões.
O cânhamo é uma variedade da Cannabis sativa que não apresenta efeito psicoativo, ou seja, não tem potencial para alterar o estado mental. No aspecto medicinal, também tem suas limitações de aplicação, já que não apresenta um grande teor de alguns canabinoides, como as plantas cultivadas para essa finalidade.
O diferencial do cânhamo, enquanto variedade de cultivo da Cannabis, são as possibilidades industriais que suas fibras, folhas, raízes e sementes oferecem.
Atualmente, há mais de 25 mil produtos catalogados derivados dessa planta. No mundo, o mercado está em contínuo crescimento e movimenta valores superiores a US$ 58 bilhões, de acordo com a Cannabis Data Company (BSDA).
Essa realidade vem chamando a atenção de pesquisadores interessados em estudar esse amplo universo do cânhamo, entre eles os que atuam na Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Índice:
- Embrapa inicia projeto de pesquisas com cânhamo no Brasil
- Mas afinal, qual a diferença entre cânhamo, cannabis e maconha?
- O cânhamo tem poder medicinal?
- As variedades industriais do cânhamo
- Os produtos sustentáveis do cânhamo
- As vantagens econômicas do cânhamo no Brasil
- Considerações finais
Embrapa inicia projeto de pesquisas com cânhamo no Brasil
Em julho deste ano, o GT da Cannabis da Embrapa (Grupo de Trabalho), formado por 19 pesquisadores, entregou um relatório com um plano de ações estratégicas para o desenvolvimento da cadeia produtiva da planta no país à DP&I (Diretoria de Pesquisa e Inovação) da empresa.
Além do relatório, o grupo apresentou um pedido de cultivo de cânhamo em solo nacional para a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). O GT foi formado apenas por pesquisadores da Embrapa. Entretanto, diferentes setores dialogaram com os pesquisadores para elaborar o documento.
O relatório propõe um programa de pesquisa que atuará em quatro vertentes conectadas: desenvolvimento de cultivares; práticas de manejo; pós-colheita e políticas públicas; economia e zoneamento. Esses temas serão trabalhados tanto para cultivo com fins medicinais quanto para fins industriais.
“O objetivo é que as ações de PD&I embasem a construção de uma cadeia produtiva competitiva, inclusiva e sustentável de cannabis no Brasil. O foco é sempre na descentralização da produção e na inclusão socioprodutiva para maximizar o uso da terra, de modo a aumentar a renda de famílias e comunidades rurais, resultando, também, em ganhos na dimensão social. Para tal, uma das estratégias é o desenvolvimento de pesquisa em parceria com o setor privado, especialmente pequenos produtores”, frisa Daniela Matias de Carvalho Bittencourt, Pesquisadora – DSc Biologia Molecular da Embrapa.
Mas afinal, qual a diferença entre cânhamo, cannabis e maconha?
“Maconha, cannabis e cânhamo são de fato a mesma planta. Existe uma discussão taxonômica sobre como classificá-la da melhor maneira, que foi controversa ao longo do tempo e dificultada pela proibição, mas o consenso científico atual é de que existe uma só espécie. Há diferentes subespécies, variedades fenotipicamente distintas, ou seja, a constituição física da planta em si. Mas todas essas plantas, das mais diversas possíveis, como as nanicas e as gigantes, com mais resinas ou mais fibras, se cruzarem entre si, geram descendência fértil. Isso significa que são a mesma planta, cuja espécie é a Cannabis sativa”, explicaPedro Nicoletti, especialista e educador em cannabis de qualidade medicinal e mestrando na UnB (Universidade de Brasília).
Uma pesquisa sem precedentes, que analisou o material genético de 110 plantas de cannabis espalhadas mundo afora, revelou que a Cannabis sativa, utilizada nas versões maconha e cânhamo, começou a ser cultivada há cerca de 12 mil anos, durante o início do período Neolítico.
As descendentes mais próximas da genética do gênero estão situadas na China, de onde teriam se originado as variações existentes até hoje.
“Nossa datação genômica sugere que os primeiros ancestrais domesticados do cânhamo e das versões de drogas divergiram da Cannabis Basal [planta ancestral da Cannabis sativa] cerca de 12.000 anos atrás, indicando que a espécie já havia sido domesticada no início do Neolítico [entre 7.000 e 2.500 a.C.]”, declaram os autores da pesquisa.
Desses cruzamentos, ao longo de milhares de anos, surgiram diferentes fenótipos da mesma planta. Como forma de nomear essas variações, passou-se a designar como maconha as plantas que produziam flores mais resinadas, utilizadas com finalidades terapêuticas, ritualísticas, recreativas e religiosas.
Já o cânhamo passou a ser associado ao fenótipo com maior produção de fibras, folhagem e sementes. De fato, essa diferenciação era pouco expressiva há alguns anos, uma vez que o termo “cânhamo indiano” era utilizado para referenciar o que hoje chamamos de maconha ou cannabis.
“A partir da necessidade e da intervenção humana, ocorreram cruzamentos que deram origem a essas variedades da espécie Cannabis sativa. Genéticas foram selecionadas e evoluíram com mais potência, por exemplo, nas fibras, na resina, ou nas sementes”, explica Pedro.
O cânhamo tem poder medicinal?
Essa é uma discussão que divide muitas opiniões entre pesquisadores e profissionais da saúde que prescrevem a cannabis com finalidade medicinal. A principal razão que provoca esse debate é o proibicionismo.
Muitos países que regulamentaram o plantio de cannabis em seus territórios seguem uma legislação que autoriza o cultivo de cânhamo, desde que o teor de THC (tetrahidrocanabinol) não ultrapasse 0,2% ou 0,3%, já que o THC é o canabinoide responsável pela ação psicoativa da planta, ou seja, a parte proibida da cannabis.
As plantas de cânhamo para fins industriais, além das fibras e das sementes, também produzem flores resinadas que concentram o CBD (canabidiol), o canabinoide mais destacado no mercado medicinal, por isso passaram a ser utilizadas na indústria farmacêutica.
Hoje, muitos produtos importados à base de CBD têm origem nessa variedade de cânhamo, o que inflama o debate.
A ciência vem mostrando que produtos de cannabis que contêm o amplo espectro de canabinoides da planta, entre eles o THC, conhecidos como Full Spectrum, têm efeito terapêutico potente e seguro para diversos tipos de tratamento.
“As plantas de cânhamo cultivadas para fins industriais, cujas flores são destinadas ao mercado medicinal, têm qualidade muito inferior às plantas cultivadas especificamente para fins medicinais, já que essas plantas não foram geneticamente selecionadas para produzir resina, mas sim fibras e sementes. Portanto, a utilização do cânhamo industrial para fins medicinais é uma questão de logística, lobby e legislação, e não de qualidade”, reforça Pedro.
As variedades industriais do cânhamo.
Do cânhamo é possível criar tijolos, cimento, plástico, papel, roupas, sapatos, alimentos, bebidas, cordas, cosméticos, combustível, madeira, carros, aviões e até instrumentos musicais. Mais de 25 mil produtos de cânhamo já foram catalogados. Conheça alguns produtos clicando aqui.
Na sua última turnê pelo Brasil, a conceituada banda de reggae nacional Natiruts estreou um baixo elétrico feito com fibra de cânhamo, ao que tudo indica, o único no mundo.
O músico e baixista da banda, Luís Maurício, se despede do Natiruts, mas não abandona a causa canábica e lidera a ABCCI (Associação Brasileira de Cannabis e Cânhamo Industrial).
“Como tudo que aconteceu na minha vida, desde a formação da banda, meu ativismo canábico aconteceu de forma natural. Sempre tive a erva como uma ferramenta terapêutica para meu uso pessoal, mas, em 2019, conheci alguns médicos que faziam o uso medicinal. Nesse momento, abracei a causa como um novo propósito na minha vida. Não considero uma virada, mas uma continuidade de um trabalho que sempre lutou por justiça social”, relata o músico.
Os produtos sustentáveis do cânhamo.
Uma das principais vantagens dos produtos industriais de cânhamo é a sustentabilidade tanto do plantio quanto dos produtos derivados da indústria: plásticos, papel, biocombustíveis, vestimentas e fitorremediação. A planta oferece boas alternativas para uma interação sustentável com o meio ambiente.
Um dos slogans mais representativos desse modo sustentável de produção de cânhamo é: “tudo que é feito de plástico pode ser feito de cânhamo”, porém diferente do plástico convencional, são produtos que se decompõem com facilidade.
Além disso, o cultivo de cânhamo não necessita de muita água nem de muitos pesticidas e a planta tem o poder de regenerar o solo, podendo atuar em áreas degradadas. Por isso, é a planta ideal para rotação de culturas, pois enriquece o solo e remove toxinas.
Seu cultivo ajuda a preservar o solo e a deixar o ar mais saudável para os próximos anos, o que é uma ótima notícia em tempos de aquecimento global e queimadas das florestas.
Outra vantagem é a capacidade de reduzir a poluição industrial por meio da captura de carbono. O cultivo de cânhamo ajuda a sequestrar o carbono da atmosfera. Segundo a AgFunder News, uma única tonelada de cânhamo pode sequestrar até 1,63 toneladas de carbono, contribuindo para a redução dos gases de efeito estufa.
As vantagens econômicas do cânhamo no Brasil.
Enquanto o aspecto medicinal, abafado pela cultura proibicionista, vem fomentando o debate e ganhando adeptos, o cultivo do cânhamo em solo nacional segue impedido pela legislação do país.
“No Brasil, o mercado ainda enfrenta sérios desafios decorrentes de uma regulamentação restritiva. Portanto, ainda não é possível definirmos um impacto econômico preciso sem antes realizarmos um estudo mais aprofundado. No mundo, o mercado está em contínuo crescimento e movimenta bilhões, de acordo com a Cannabis Data Company (BSDA). Esse crescimento tem sido impulsionado por mudanças na legislação de diversos países, o que impacta em avanços na pesquisa científica e no desenvolvimento de novos produtos provenientes da planta, que dão origem a novos mercados”, pontua a pesquisadora da Embrapa, Daniela Bittencourt.
Na tentativa de mudar a visão preconceituosa e deturpada que muitas pessoas ainda carregam sobre a Cannabis, a jornalista e CEO da Informacann, Manuela Borges, criou uma exposição itinerante chamada: Cânhamo, uma revolução agrícola não psicoativa.
“A ideia é levar produtos acabados ao maior número de pessoas para que elas possam tocar, cheirar e normalizar o entendimento de que a Cannabis é só mais uma planta medicinal e uma commodity de relevância sustentável e ecologicamente correta”, explica a jornalista e idealizadora da exposição.
A mostra reúne mais de 100 artigos desenvolvidos com partes da planta, como fibra, sementes, raízes e flores. Entre os produtos estão: hempcrete (tijolo), madeira, papel, cosméticos, bioplástico, roupas e alimentos não psicoativos.
Considerando que os parlamentares são figuras indispensáveis nas mudanças das leis, a exposição passou pela Câmara dos Deputados, em Brasília, pela Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) e pelos shows do Natiruts.
Entre as centenas de pessoas, incluindo curiosos, pacientes, ativistas e políticos que visitaram a exposição, todos saíram impressionados com o potencial da planta.
“De forma geral, as pessoas recebem muito bem, mas, dentro do Congresso, principalmente, há aqueles deputados que negam o que está ali exposto, como o deputado Osmar Terra. Porém, o que prevalece é a curiosidade diante de tantas variedades que uma única planta pode produzir”, revela Manuela.
Existem algumas estimativas de mercado, produzidas pela Kaya Mind, que apontam para uma movimentação financeira em torno de R$ 5 bilhões, além de R$ 300 milhões em impostos e 300 mil empregos diretos.
Em termos de potencial de cultivo, ainda que o solo e o clima brasileiros indiquem grandes chances de prosperar essa modalidade agrícola, é preciso muita pesquisa para entender como essas plantas vão se comportar. Por isso, há urgência em se criar uma legislação que permita o cultivo para pesquisa.
Além disso, como já existe o cultivo de Cannabis para fins medicinais, tanto por pessoas físicas quanto por associações, através dos HCs (Habeas Corpus), que são medidas protetivas emitidas pelo poder judiciário, é preciso avaliar qual será o impacto do cultivo de cânhamo sobre cultivos medicinais, já que essas variedades podem se cruzar e assim, causar alterações nesses cultivos.
Considerações finais
Ainda que a discussão sobre a Cannabis esteja acalorada no país e no mundo, há um longo caminho pela frente para desmantelar o proibicionismo e criar um cenário regulamentado, capaz de atender às demandas medicinais e industriais desse mercado.
Educação e informação estão no cerne dessa discussão, que ainda enfrenta uma opinião pública carregada de percepções preconceituosas decorrente de anos de proibicionismo.
É preciso pensar na emergência desse mercado rentável, cuidando para que medidas de reparação históricas e sociais sejam aplicadas. Afinal, por conta de uma mesma planta, enquanto uns estão empreendendo e colhendo lucros, outros seguem sendo encarcerados e mortos pela proibição.
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