Considerado um dos maiores defensores da liberdade e reforma do uso da cannabis nos EUA, onde nasceu, Steve DeAngelo criou iniciativas e projetos que atuam diretamente na produção, venda, linhas de investimentos, pesquisas e nas ações de reparação histórica que ajudam a mudar a realidade proibicionista de seu país e do mundo.
Saiba mais sobre este visionário e profundo conhecedor da planta aqui no nosso blog.
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A entrevista foi mediada pelo Diretor de Cultivo da SouCannabis Pedro Nicoletti.
Entrevista:
Pedro Nicoleti – Você começa o livro contando às pessoas sobre sua jornada pessoal com a cannabis. Isso é muito importante porque você esteve presente nos momentos mais significativos dessa história.
Como sua história pessoal está conectada com a história recente da Cannabis?
Steve DeAngelo – A minha história de vida está totalmente entrelaçada com a história da cannabis dos últimos 50 anos.
Minha jornada cannabica começou na minha adolescência, quando eu tinha 13 anos.
Um amigo me chamou para uma festa mexicana regada a muito chá.
Naqueles dias, toda a Cannabis dos EUA era mexicana. Fumei um baseado e aparentemente não aconteceu nada. Fiquei decepcionado.
No caminho de volta para casa eu andei pelo parque que sempre passava e naquele dia comecei a notar coisas que nunca havia notado antes, sensações e percepções diferentes.
Foi uma experiência avassaladora e eu entendi que a planta era uma planta boa, não uma planta ruim, e que ela seria uma parte da minha vida para sempre.
Me tornei ativista cannabico e esse foi o começo da minha jornada com a cannabis.
Pedro Nicolleti – Quando e por que você começou a trabalhar com cannabis?
Steve DeAngelo – Comecei a trabalhar com cannabis quase ao mesmo tempo que comecei a consumir cannabis. Eu vim de uma família da classe trabalhadora.
Eu não tinha muito dinheiro para gastar com cannabis e sabia que queria continuar consumindo. Eu também era uma criança empreendedora.
Enquanto eu fazia entregas de jornal, que era meu trabalho, eu pensava em como trabalhar com maconha. Comecei vendendo pequenos maços com seis cigarros Foi o primeiro dos negócios de Cannabis que construí.
Pedro Nicoletti – Conte-nos um pouco mais sobre o que veio depois disso.
Steve DeAngelo – Eu cresci numa família ativista de direitos civis em Washington DC no início dos anos 70, no auge da Guerra do Vietnã.
Então, para mim, lutar contra algo que está errado sempre foi natural.
Como eu sempre amei cannabis desde meu primeiro contato, não estava disposto a ser um criminoso pelo resto da minha vida.
E então, ficou claro para mim, que a luta para libertar a planta de cannabis era o que me movia pessoalmente.
Com o passar dos anos fui aprendendo mais sobre a história da planta e a ciência dela.
Aprendi que lutar para libertar a planta significa lutar por todas as outras coisas que me importam profundamente: lutar para salvar o planeta e impedir sua destruição, lutar para trazer paz e harmonia, lutar pela justiça racial, lutar para construir mais diversidade em nossa sociedade.
Mais bondade e mais gentileza no mundo.
Lutar pela legalização da cannabis é lutar por muitas causas.
Hoje em dia, enquanto vemos lugares diferentes legalizando a cannabis, percebi que legalizar a cannabis não é nosso objetivo final como movimento, ou pelo menos como uma tribo de pessoas que amam a cannabis, porque ela nos ensina um sistema de valores pelo qual podemos viver com dignidade e orgulho.
Legalizá-la e torná-la amplamente disponível é apenas o primeiro passo para construir um mundo que viva pelas lições que a cannabis nos ensina.
Pedro Nicoletti – Há um capítulo no livro que diz que a cannabis nunca deve ser ilegal. Eu gostaria de te perguntar por que você acha que a cannabis é tão perigosa para os poderes dominantes neste mundo?
Steve DeAngelo – Se você der uma olhada na história da cannabis e dos seres humanos, veremos que estamos consumindo esta planta desde o início da nossa evolução enquanto espécie e possivelmente mais do que isso.
A primeira evidência arqueológica de consumo da cannabis pelos humanos remonta há 12.500 anos e coloca a cannabis em um contexto sacramental.
Se você estudar essa história o que descobrirá é que a cannabis tem sido frequentemente considerada uma ameaça por diferentes tipos de elites, como as religiosas, econômicas ou étnicas. Isso em vários momentos e diferentes lugares ao redor do mundo.
A cannabis chegou aos Estados Unidos por volta da virada do século passado pelas mãos de negros e pardos e também pelas mãos de populações marginalizadas e oprimidas, como refugiados da Revolução Mexicana, isso por volta de 1910, e de marinheiros afro-caribenhos que vinham de lugares como Jamaica e Trinidad,
Nos Estados Unidos foram aprovadas leis para controlar os negros e os pardos.
O registro legislativo dessas leis tem comentários de caráter explicitamente racistas. Não se falava em ciência ou qualquer preocupação com a planta.
Ao olhar para a história veremos que esse padrão se repete.
Em 1492, na Espanha, quando Fernando e Isabel completaram sua reconquista no sul da Espanha, foi proibido o consumo de cannabis.
No antigo Egito, nos séculos 11 e 12, existem histórias de governantes islâmicos conservadores fazendo campanhas para suprimir o uso de cannabis por populações sufistas mais moderadas e que usavam a cannabis.
Isso mostra que as elites têm medo de qualquer planta visionária, seja cannabis, seja ayahuasca, seja psilocibina.
Essas plantas, vindas diretamente da própria mãe natureza, com suas lições mais preciosas e importantes, têm uma autoridade maior do que qualquer criação mundana de seres humanos.
Do que qualquer governo, qualquer corporação, qualquer instituição educacional sem aspas.
Nenhum deles pode se opor à autoridade das plantas.
Todas essas pessoas que se colocam como intermediárias entre nós e o Divino se sentem ameaçadas.
Há dois sistemas de valores diferentes dos quais estamos falando.
Com tantas pessoas e animais sendo tratados como coisas ao invés de serem tratadas como criaturas vivas, onde se valoriza mais o amor pelo poder do que o poder do amor, a cannabis nos ensina a amar novamente.
A maconha nos ensina a pensar no outro, a pensar naquela planta, a pensar naquele animal, a ouvir o nosso coração e a sermos seres humanos melhores.
Isso é expressão do amor.
E assim, o que estamos tentando fazer, quando falamos em construir um mundo que viva pelas lições que a cannabis nos ensina, é construir um mundo que respeite mais o poder do amor do que o amor pelo poder.
Os que estão no topo da pirâmide do poder não necessariamente estão felizes, mas concentram dinheiro e recursos em detrimento de muito sofrimento, precisamos inverter a pirâmide e espalhar poder, dinheiro e recursos mais amplamente.
Estamos num momento incrível da história humana.
Temos a geração mais inteligente de humanos.
Temos esse poder incrível da tecnologia e se o voltarmos para o poder do amor, estaremos muito próximos de uma espécie de paraíso na Terra que os seres humanos tanto sonham.
Por outro lado, podemos destruir tudo.
Tudo depende de aprendermos ou não a amar novamente, e esta planta nos ensina a amar novamente.
Pedro Nicoletti – Às vezes parece óbvio e nós sentimos, mas não podemos cristalizar em palavras como você fez no livro do Manifesto da Cannabis.
O Brasil está passando por uma crise.
A gente pode dizer, momentos sombrios da história. Temos um presidente muito duro, totalmente anti cannabis. Isso já aconteceu com você antes em outros tempos da história americana.
Como você entende e lida com a natureza cíclica de ser ativista da cannabis?
Steve DeAngelo – Quando comecei o ativismo pensei que contar ao mundo a verdade sobre a cannabis em três, quatro ou cinco anos estaria tudo certo, afinal estávamos certos, mas de fato não foi assim que aconteceu.
É uma luta muito mais longa.
Faço isso há cinco décadas e, na minha opinião, estamos apenas começando esse movimento.
Mas, sempre que você faz parte de um movimento social de uma causa maior do que você, isso é grandioso. É importante.
Você tem que estar preparado para as inevitáveis reviravoltas na política.
Portanto, nossa causa é libertar esta planta e trazê-la para o maior número de pessoas possível, para construir um mundo que viva pelas lições que ela nos ensina.
É muito mais profundo, muito mais longo, uma agenda muito maior do que qualquer político individual ou qualquer partido político individual possa ter.
E com o tempo, esses políticos e esses partidos, se tornam ora nossos inimigos, ora nossos amigos, a depender das circunstâncias.
Temos que ser muito estratégicos para que nossa causa, nosso compromisso, sejam mais fortes do que isso e superem qualquer reviravolta política.
Existem alguns momentos muito desafiadores.
Como um jovem ativista cresci em uma época em que nosso movimento estava ganhando muita força.
Começamos o movimento de Reforma da Cannabis na década de 1970.
Aprovamos leis de reforma da cannabis em 14 estados dos Estados Unidos da América.
Quando Ronald Reagan foi eleito presidente em 1980, tudo mudou.
Houve uma repressão muito intensa. Muitas propagandas mentirosas sobre a cannabis e seus efeitos nocivos ao cérebro. Testes de urina passaram a ser obrigatórios para controlar as pessoas.
Uma repressão terrível que se estende até os anos 2000.
Em 1996 aprovamos a primeira lei de cannabis medicinal, mesmo assim foram anos difíceis para os ativistas.
Mas seguimos em frente. O que eu entendo hoje é que a luta em que estamos agora é muito mais vasta e num espaço de tempo que eu jamais imaginei
A história nos mostra que usamos cannabis e outras plantas visionárias por 10.000 anos e durante esse período nós, seres humanos, não éramos perfeitos.
Tínhamos nossa quota de palavras e nossa parcela de opressão, mas não tínhamos holocaustos em escala industrial. Nós não matamos milhões e dezenas de milhões de seres humanos de forma mecânica.
Não criamos tecnologias que ameaçam destruir o planeta.
Toda essa loucura que estamos vendo hoje começou há cerca de dois mil anos.
Esse período de dois mil anos no mundo ocidental corresponde ao período em que começamos a nos afastar das plantas visionárias.
Foi quando a Igreja Católica proibiu o uso de todas as plantas de poder, incluindo a cannabis.
Foi aí que começamos a ver a criação das ideologias e das tecnologias que hoje nos deram um mundo que se equilibra à beira da autodestruição.
Agora estamos no processo de recuperar essa tradição. Recuperar uma cultura baseada em plantas. Não apenas na espiritualidade baseada em plantas, mas indústria baseada em plantas, medicina baseada em plantas, moda baseada em plantas…
Assista a entrevista completa gravada em nosso canal no youtube.