Mais de 70 pessoas participaram do evento que abordou ciência, tradição e direitos. Ao final, os participantes se juntaram para realizar a primeira Marcha da Maconha na cidade.
Em uma cidade marcada pelo agronegócio e que se consolida como pólo da indústria farmacêutica, Anápolis (GO) entrou para o mapa nacional do debate sobre o uso terapêutico da Cannabis ao sediar, pela primeira vez, um evento que reuniu ciência, tradição, ativismo e política: o 1º Simpósio Integrado sobre o Uso Medicinal da Cannabis.
O evento foi uma parceria entre a associação SouCannabis, com sede no município e a Comissão de Saúde da OAB Anápolis. Com mais de 80 participantes inscritos e uma programação diversa, o evento marcou um novo ciclo na luta pelo acesso à saúde, culminando na primeira Marcha da Maconha de Anápolis, realizada com alvará da prefeitura, postura e apoio da Polícia Militar.
Cannabis: ciência, saúde e saberes ancestrais em diálogo
A abertura do simpósio foi marcada por um discurso potente sobre os desafios e as urgências do uso medicinal da planta. A diretoria da SouCannabis destacou a importância de reunir instituições, profissionais de saúde, juristas e movimentos sociais em um mesmo espaço de escuta e construção coletiva
“Falamos aqui de vidas que não podem esperar. A ciência já respondeu. Os médicos já prescrevem. As famílias já dependem. A terapia com cannabis é uma verdade consolidada respaldada por evidências clínicas e pela experiência concreta de mais de 600 mil brasileiros que fazem uso terapêutico da planta.”, pontua Derick Rezende, coordenador geral da associação.
Durante o evento, mulheres especialistas e pesquisadoras da Cannabis em diversas áreas compartilharam suas práticas clínicas e estudos sobre o uso medicinal da Cannabis: médica ginecologista, fisiatra, dentista, veterinária e farmacêutica, apresentaram casos, estudos e dados que comprovam os benefícios da planta no tratamento de diversas condições, como dor crônica, epilepsia, autismo, ansiedade, doenças inflamatórias e cuidados paliativos.
“É muito importante esse tipo de evento, que coloca em pauta a Cannabis enquanto possibilidade terapêutica, pois ajuda a informar com qualidade e assim, romper as barreiras do preconceito. Estamos diante de um assunto que gera ao mesmo tempo curiosidade, mas também muita confusão e controvérsia, por isso a importância de ampliar esse tipo de diálogo com a sociedade, para mostrar que existe a ciência fundamentando o uso terapêutico da planta para diversas patologias”, reforça a Dra. Endy Lacet, cirurgiã dentista e diretora de pesquisa da SouCannabis.
Pajé Ybã leva espiritualidade e ancestralidade ao centro do debate
Entre os momentos mais emocionantes do simpósio, destacou-se a participação do pajé Ybã, que trouxe a dimensão ancestral e espiritual da cannabis, resgatando suas origens como planta sagrada em práticas indígenas de cura, conexão com a natureza e fortalecimento comunitário.
“A medicina da Cannabis é uma tecnologia ancestral e milenar que acompanha os povos originários, então a presença de representantes desses povos em eventos como esse, é uma forma de fazer essa reparação histórica. Para nós, a Cannabis é uma planta sagrada que representa, para além da medicina, uma conexão espiritual com os elementos da natureza. Tudo o que faz parte da natureza guarda um poder, pois são elementos sagrados e nós entendemos essas medicinas, entre elas a Cannabis, como mestres, que além de nos curar das enfermidades ajuda a curar nosso espírito”, explica o Pajé Ybã Huni Kuim.
Sua fala estabeleceu um elo entre ciência e tradição, lembrando que muito antes da proibição, a cannabis já era usada como remédio, alimento, tecido e instrumento de equilíbrio espiritual.
Política, direito e justiça social: a urgência da regulamentação
Outro eixo forte do evento foi o debate jurídico e legislativo sobre o uso da cannabis no Brasil. Representantes políticos, como deputados, o vice-presidente da OAB Anápolis, promotores e advogados debateram os desafios legais do acesso à planta. Também participaram presidentes de associações e federação de Cannabis, a FACT, que atuam na produção de óleos, no suporte a pacientes e na defesa da regulamentação do cultivo.
“Agradeço a Dra Ana Paula Souza, que em nome da OAB, abraçou a realização desse evento tão significativo para nossa cidade. Uma temática que enfrenta muita resistência, mas que deve ser pautada, pois estamos falando de princípios que estão previstos na constituição, que é o direito à saúde e os direitos humanos”, destaca o vice-presidente da OAB de Anápolis, Dr Leandro Vitorino.
O deputado estadual, Lincoln Tejota, reforçou sobre a importância de valorizar o aspecto medicinal para ampliar as possibilidades de tratamento dentro do SUS.
“A Cannabis é um grande tabu, enquanto temos o álcool como substância legalizada e muito enaltecida nas músicas sertanejas, a cannabis sofre muito preconceito. Quando eu ingressei na política, enquanto vice-governador do estado de Goiás, eu tive a oportunidade de apresentar essa terapia ao governador, depois apresentei o primeiro projeto de lei para acesso à Cannabis medicinal pela assembléia legislativa do estado, pois eu sabia dos resultados positivos desse tratamento. É preciso acabar com a hipocrisia e reconhecer a importância da cannabis enquanto medicina”, defende o deputado.
O evento também denunciou os efeitos da política de guerra às drogas, que criminaliza usuários e pequenos cultivadores, afetando majoritariamente a população negra e periférica. Aproximadamente 40% das pessoas presas no Brasil estão sob a Lei de Drogas, muitas vezes por portar quantidades mínimas, o que revela a seletividade penal e a urgência de uma abordagem mais justa e reparatória.
1ª Marcha da Maconha de Anápolis reúne ativistas e recebe apoio da PM
Após o simpósio, Anápolis viveu outro momento histórico: sua primeira Marcha da Maconha. O ato pacífico percorreu as ruas do centro com cartazes, faixas e palavras de ordem pela legalização, liberdade e ciência. A manifestação contou com escolta da Polícia Militar, que garantiu a segurança de todos os participantes durante o circuito, que aconteceu de forma pacífica e sem o fechamento total da rua, mesmo em meio a mais de 200 pessoas.
A marcha foi resultado direto da mobilização criada por ativistas e usuários da planta, mostrando que o debate está amadurecendo na cidade e abrindo espaço para uma política de drogas baseada em evidências, inclusão e direitos humanos.
Um marco para a cidade e para o movimento canábico no Centro-Oeste
A realização do simpósio e da marcha mostra que Anápolis está pronta para integrar o movimento nacional pela regulamentação da Cannabis. A cidade se junta a outras capitais e municípios que caminham no entendimento de que o acesso à planta é uma questão de saúde pública, justiça social e reparação histórica.
Com o fortalecimento de redes como a SouCannabis, que já acolhe mais de 5 mil pacientes no Brasil, e o apoio institucional da OAB, a expectativa é que esse evento seja o primeiro de muitos. Um marco que une ciência, espiritualidade, direito e mobilização social em nome de uma causa que já não pode mais esperar.