Características da regulação uruguaiana da cannabis
O diretor de comunicação da SouCannabis Pedro Nicoletti viajou para o Uruguai em dezembro de 2022 e compartilha conosco as coisas que ele aprendeu por lá, para que tentemos evitar que os mesmos problemas aconteçam por aqui num futuro próximo…
1 – A regulamentação é sensível às mudanças de governo (nenhuma conquista está garantida)
As leis em si não mudaram, mas a regulamentação é um processo vivo, que vai mudando à medida que desafios não previstos surgem e novas normas são criadas para complementar aspectos antes não previstos. A mudança de governo de 2020 causou impacto desfavorável no desenvolvimeto da indústria cannabica em vários sentidos. A multiplicação das prisões por microtrafico foi um deles, e demonstram que uma mudança na interpretação das leis pode resultar no uso excessivo do aparato repressivo do estado provocando a perseguição de usuários e produtores como se estivessem em regime de proibição.
2 – Criou-se uma separação artificial entre maconha medicinal e recreativa (As restrições restringem os potenciais benéficos para a saúde e a para a economia)
A lei no Uruguay insiste na enganosa divisão entre a cannabis medicinal e recreativa, feita por produtos de CBD vendidos na farmácia (sem presença de flores ou produtos vaporizáveis) por um lado, e por produtos de THC conseguidos também na farmácia (basicamente flor seca – 40g por mês no máximo) nos clubes ou através do autocultivo por outro. Segregando assim o acesso, e restringindo o que pode ser entendido como terapêutico, ou recreativo, o que limita os usos sem razão.
3 – A oferta de THC em flor na farmácia é econômica, mas também é limitada, inconsistente e de baixa qualidade.
Em média o grama da flor na farmácia custa 2,5 dólares. É barato, mas em termos de qualidade as flores da farmácia são a pior oferta das 3 vias oficiais de acesso, e bastante inferior se comparada às opções de outros países que têm varejo. As políticas restritivas e demandantes só permitem até hoje a existência de 5 empresas produtoras habilitadas, algumas poucas variedades disponíveis. Não encontrei produtos de THC processados (gotas, comestíveis, extractos, etc) para venda nem para o mercado medicinal nem para o recreativo.
4 – A via de acesso por clubes é atrativa, mas não é para todos (consumidores menos vorazes ficam de fora)
A oferta dos clubes consegue em alguns casos casar qualidade com preço, mas a saúde financeira dessas associações é delicada. Como elas só podem ter no máximo 45 membros e 99 plantas, elas só funcionam com superavit se ficam perto da lotação total, mas também se cada associado mantém um consumo constante alto, já que a quota pessoal não permite que pessoas com consumo maior possam “compensar” por aquelas que consomem menos. Nessa sinuca, os clubes dão preferência para associados que possam se comprometer com consumo alto e constante para poder ter sustentabilidade econômica. Consumidores de poucas quantidades ficam de fora.
5 – Você não pode participar de vias de acesso diferentes como autocultivo e clube simultâneamente.
Depois de passar pelo processo burocrático de 3 meses para conseguir a permissão do autocultivo ou a carteira de um clube, você não pode mudar de opinião sem passar pelos 3 meses de novo. Se o seu autocultivo falhar, ou for roubado por exemplo, você não poderia pedir ajuda para um clube.
6 – O mercado ilegal segue vivo e pujante (anunciando que o processo regulatório não vai bem).
Seja pelo preço, seja pela qualidade, ou pela facilidade de acesso, as pessoas terminam comprando no mercado ilegal, que segue vivo e pulsando. Insclusive agora existe um mercado ilegal de produção e distribuição dentro do país onde antes só havia distribuição, agora as vezes praticadas pelos mesmos licienciatários.
7 – A falta de educação para consumidores e para profissionais envolvidos (a comunidade tem dificuldade para se apropriar dessa nova ferramenta).
Quase 10 anos depois da legalização não existem projetos educativos e de capacitação consolidados. Não há graduações especializadas nem cátedras específicas para o ensino das habilidades e conhecimentos cannabicos. Os consumidores terapêuticos ficam a mercê do que os médicos instruem. Os médicos seguem sem capacitação específica dentro da universidade ou em espaços de formação. A iniciativa privada também não emplacou nenhum projeto de vigor que pudesse virar referência em um ambito de negócios. Com isso não há cabeças frescas, pensantes, criativas, que se adaptam a um cenário novo.
8 – Não há regulamentação específica para associações terapêuticas (elas tratam de se adaptar às normas dos clubes recreativos).
Os clubes foram desenhados para serem recreativos. Apesar de haver pacientes interessados nessa via de acesso, a legislação impede que essa demanda seja atendida satisfatoriamente. As associações terapêuticas acabam existindo, mas de maneira limitada e irregular.
9 – O movimento ativista relaxou (e perdeu força)
A cultura ativista já foi mais ativa no país. Depois da legalização houve uma certa “acomodação” em uma zona de conforto. Organizações se desmobilizaram e redes se fragmentaram. As dificuldades de desenvolvimento e o aumento da criminalização está obrigando as pessoas a saírem da inércia, mas o movimento está desarticulado para responder à criminalização dos usuários e produtores, da maneira mais contundente.
10 – O modelo está engessado (não há revisões da normatividade a luz da experiência, e nem vontade política para tanto)
Depois de 10 anos de legalização, e alguns erros constatados, há dificuldade de encontrar vontade política para reformulação das normas de regulamentação que claramente precisam ser revistas.
Estas informações foram reunidas com base em depoimentos de diferentes personagens que encontrei durante a viagem à expo cannabis uruguay, e conta com valiosas contribuições da ativista e gestora de clubes @larodelosclubes